6 de setembro de 2017

Ainda


Limites, repetição, prisão. Todas estas palavras significam a mesma coisa para ela. Nem mesmo um nome lhe deram. É uma mulher de vinte e poucos anos que dança a mesma música com o mesmo par no mesmo lugar e no mesmo momento. Na verdade, só há um instante e ele se mantém. Ela sabe que alguém os observa. Às vezes consegue sentir o toque quente sobre a tela. Querem saber se é real; se não é uma cópia. A tinta secou há muitos anos, mas a dança não acaba enquanto existir a observação. Quando as portas se fecham, os passos se afastam e as luzes se apagam é que pode desfrutar da liberdade. Conversar, se sentar, beijar. De dentro, a tinta é sempre fresca. Sair? Ela sabe que é possível, embora não possa precisar como. É como um nome na ponta da língua que teima não sair. Um gatilho prestes a atingir o cão do revólver. O cheiro de pólvora é assustador. Como sabe identificar o cheiro de pólvora? A música toca infinitamente, as mesmas risadas e comentários. Tudo é tão previsível e automático que não há vida.
Ela não está mais dançando. Em sua frente há um homem de traços orientais. Ele é pequeno, forte, ágil e confiante. O sujeito cobra-lhe foco. O suor escorre do peitoral definido do homem. O que faz ali? É confuso. É complicado. Ele fala o seu nome. Ela sabe que é o seu nome, mas não consegue guardá-lo na memória. O que está havendo? 
Segura a taça com delicadeza. O cristal está próximo aos seus olhos castanhos para análise. Franze o cenho ao imaginar que o objeto foi moldado em homenagem aos seios de uma rainha. Teria bebido vinho demais? Não seria a única. A risada alta, gestos exagerados, franqueza, são observados no salão. Todos estão felizes, o observador se foi. É noite lá fora. Uma mulher bonita se aproxima, os seus ombros descobertos estão suados. A festa é em homenagem ao casamento desta mulher que é sua amiga e isto basta. Basta? Não. Falta algo. Um objeto. Ela pergunta:
— Onde está sua aliança?
— As pessoas não vão entender — o homem de traços orientais fala o nome mais uma vez. 
Ele está certo. Não é fácil compreender que todo ser humano não passa de um objeto de adorno; que sua vida está presa em uma joia dimensional. O oriental é apenas uma aliança perdida, já que se tomassem consciência de sua existência ele teria o mesmo fim das outras joias.

Guardado.

— Eu a perdi — a Noiva dá de ombros. 
Ela beberica o resto do vinho de sua taça. Responde: 
— Deveria tomar mais cuidado.    
— Ainda acho que algumas coisas não podem ser evitadas.
Ela abre os olhos vigorosamente. Um estalo, um chute no estomago, um atropelamento, buzinas. A taça escapa-lhe dos dedos e ganha o assoalho de madeira estilhaçando-se. Ela afasta a cadeira, desajeitada. Noiva também se levanta sob constantes pedidos de desculpa. Entre os cacos há uma aliança prateada e reluzente. 
Ele se chama Jun-fan e não morrerá de velhice. Tem esposa e dois filhos ainda (é esta a palavra) pequenos. Em que ano está? Não importa. É como admirar um quadro, os detalhes continuam ali, mas a visão da totalidade é que é chamada de arte. O relevo da tinta, o desenho que mais parece um borrão se observado de perto. A moldura fecha o mundo, assim como o metal cerca a vida. Repetição. Tudo está pré-determinado para aqueles que estão afastados. Os afastados são como o observador. A explicação é bem simples: são aqueles que podem ver a totalidade.
— Liberte-se — é o que Jun-fan diz. 
Ela pensa em argumentar com ele, explicando-lhe que a vida é um círculo prateado, donde não se pode precisar o local do começo e o fim, mas desiste. O homem acredita verdadeiramente no que diz e há algo estranho nele. Ela sabe o que é; percebe que já viu alguém com habilidades similares; um ser capaz de compreender a beleza de uma joia. 

Ourives.

Os joelhos pressionam o assoalho de madeira ao som do vidro esmagado. O anel está pinçado e em frente aos seus olhos. 
— Ele me fez colocar em sua bebida. Disse que algo está acontecendo; que você precisa se preparar.
Ela gira o anel entre os dedos. O metal frio, uma vida. Quem? 
— Coloque-o — diz Noiva.


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