2 de outubro de 2015

Tomo XVIII - O Pistoleiro Fantasma


Presente. Mae Dickson cavalgava pelo deserto. O cavalo ia desgovernado, lento e fora de ritmo. Ela mal tinha forças para manter-se em cima do animal, as rédeas frouxas. A poeira se erguia por causa do vento e ela não podia enxergar direito. Não que isso fizesse diferença. O que estava acontecendo? Havia roubado de Valley a roupa, além do sangue para repor o avermelhamento perdido, mas algo não estava correto. Era como se lentamente suas forças fossem drenadas. Mesmo sob o sol escaldante, sabia que sua exaustão estava sendo acelerada por algo desconhecido. Tanto esforço para descobrir o paradeiro do filho rejeitado e agora sucumbiria sobre a areia do caminho? A vista turvou, ela forçou para manter-se consciente. O vento soprou contra a camisa grande e negra que lhe cobria. O corpo pendeu, os joelhos desprotegidos tocaram a areia com violência. Forçou as pernas e os braços para se levantar, enquanto o cavalo ainda estava próximo. O chapéu se desprendeu da cabeça, os lábios estavam tão secos. 
— Vamos malditos robozinhos. Arrumem o que for preciso para eu seguir caminho — disse a si mesma.
As tripas doíam. Levou a mão ao estomago. Ânsia, vômito e fraqueza. Ouviu passos. Viu o bico da bota, esperou pelo chute. Ele não veio. Mãos grandes e esqueléticas agarraram-na pelo ombro. Arrastaram-na. Estava desorientada, mas viu um homem magro, de sobretudo negro e coldre na cintura lhe socorrer. Ele não tinha cabeça. 
— Xamã — ela sussurrou. — Então veio me buscar? 
O homem sem cabeça não expressou reação. Continuou a arrastá-la. Depois de um tempo parou e tirou das costas um cantil. Derrubou água sobre a cabeça de Mae e em seguida deu-lhe de beber. 
— Obrigada. Agora você pode continuar a me arrastar para o inferno — ela então apagou de vez.
Horas depois acordou e ainda viu o antigo mestre ao seu lado, assustadoramente decapitado mexendo nos gravetos incandescentes de uma fogueira. Tentou falar alguma coisa, mas não tinha controle da voz. Apagou mais uma vez. 
Sonhou com Xamã. No sonho ele voltava a ter a cabeça perdida em Prime. Também se encontrava de frente a uma fogueira.
— Você está envenenada — ele falou. 
Então acordou. O pistoleiro sem cabeça ainda continuava perto, mas agora não havia vestígios de fogueira. 
— Estou tendo alucinações — ela disse. 
Sentiu medo de morrer. A mesma coisa que lhe invadiu quando foi fuzilada pelos homens de Morrison, embora ali o seu desejo fosse contrário. Entendeu que o seu receio não era necessariamente existencial, mas temporal. Se não houvesse tempo para pedir perdão ao filho abandonado? Fez aquilo que se faz nestas situações: prometeu. Aproximou-se cambaleante do fantasma silente de Xamã e disse-lhe:
— Eu prometo que seu não morrer aqui vou recuperar a sua cabeça.

Mae Dickson abriu os olhos subitamente. Estava em um coxão de palha, numa tenda conhecida. O corpo coberto apenas por um fino lençol, os cabelos desarrumados. Ao seu lado um homem ainda dormia. Depois do incidente no deserto próximo a Liandra, a comitiva de Damian alcançou Mae, já que ela se encontrava debilitada após o confronto com Wally.
Damian Wayne se espreguiçou. Sorriu.
— Já valeu a pena.
— Valeu a pena?
— Ter te salvado de novo. É a primeira vez que amanhecemos juntos.
Ele se levantou. Foi até a bolsa de couro que descansava sobre o solo e tirou dela um estojo de seringas. Voltou-se para Mae.
— Esta é a última dose e estará totalmente limpa. 
— Limpa?
— Os policiais agora estão usando avermelhamento envenenado. O veneno é acionado quando entra em contato com o sangue de outra pessoa. Em outras palavras, não faz mal ao policial, apenas ao bandido usurpador de avermelhamento.
— Está me dizendo que peguei isso quando drenei o sangue do policial que matei? 
— Sim. Isso é coisa do Morrison. Ele tem acesso a armas biológicas incríveis dos obsoletos. A gente pagou o olho da cara pelas seringas de cura.
Mae se virou para pegar um cigarro e o isqueiro. Depois estendeu o braço ao amigo para a aplicação. Damian se aproximou, retirou o ar da seringa e injetou o líquido. Disse:
— Que tal me contar o que está acontecendo?
Mae o observou por um tempo. Expeliu fumaça pelo nariz. 
— Há uma pessoa que preciso encontrar. 
— Por que não fico surpreso?
— Não é Bruce.
— Morrison?
Ela gesticulou negativamente. Ele fez outra pergunta: 
— Quem então?
— Meu filho. 
— Por que isso agora? 
— Eu não sei ao certo, mas Xamã me disse uma vez que antes da Lei do 30 havia um Código. Preciso entender isso.
— Ele te falou disso? Eu sinceramente não sei se é verdade, Mae. Nunca encontrei alguém que agiu primeiro pensando nos outros e depois em si. Olha que rodei Novo Oeste inteiro. A Lei do 30 sempre me pareceu correta. 
— Não é verdade. Você me salvou de Morrison, arriscando a própria vida. 
— Eu gosto de você e não pensei direito no que estava fazendo. Se analisar bem, coloquei duas pessoas para morrer para te salvar, além de me manter em segurança também. Eu não sou diferente dos outros. Nem você. 
— Xamã não pensava em si mesmo.
— Ele era um bom homem, mas tinha os seus próprios interesses. Foi loucura tentar roubar as armas em Prime. Ele queria a glória de mudar o mundo. 
— E você, Damian, o que quer?
— Quero acordar vivo amanhã e com você ao meu lado, tal qual hoje. 
Eles se beijaram calorosamente. Ela o afastou.
— Primeiro preciso encontrar o meu menino. Então saberei se o que Xamã disse é apenas uma lenda.
Damian deu de ombros. A bandida vivia num mundo violento, impiedoso e egoísta, cuja única norma era cuidar de si mesmo. Sentia na pele os efeitos desta ideologia quando pensava no que ocorreu com Xamã; na traição de Bruce Parker. Tinha uma vontade quase incontrolável de matar os responsáveis. Falsidade, egoísmo, poder. Sabia bem o que cada uma dessas palavras significava, mas não entendia o sentimento que orientou os obsoletos quando criaram o Código ou a lenda sobre ele: o tal amor. Não precisou de conexões com micro robôs espalhados pelo mundo para deduzir que a falta dele foi a ruína do Código e a vitória da Lei do 30. Estavam todos cegos pelo gatilho, inclusive ela.

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