14 de julho de 2015

O Catálogo de Corpos


O senhor Amadeu sempre foi um homem de poucas palavras, avesso à bajulação. Mesmo assim seus atos sempre foram dignos de honras e ele costumava dizer que era assim que todo mundo deveria se portar. Os atos devem ter valores independente do seu executor. Não é quem faz que deve ser agraciado, mas o que foi feito. Às vezes era rude com aqueles que o rodeava. A idade contribuía para o temperamento objetivo. Não tinha tempo para perder com honras. Com seus sessenta e oito anos, residente em uma cidade pequena do interior do estado, numa chácara para ser exato, tinha uma rotina saudável. Funcionário Público aposentado, nunca almejou riqueza maior do que um teto e comida. Por isso, era feliz. Já fazia hora extra, costuma dizer. Também comentava com os amigos: 
— O que faço, não sou em quem faço, mas quem pode, através de mim. Agora que estou velho, não há muito o que fazer.
Os familiares diziam que era bobagem. Para eles o que o Senhor Amadeu havia feito ia muito além do teto e do alimento. Havia bens angariados pelo patriarca com o objetivo de propiciar à família momentos que valessem por si mesmos. Apartamento na Praia, uma poupança (nunca se sabe) razoável. Cristiano, o filho mais velho, sabia de tudo isso e não escondia os seus interesses. Era um homem bem casado, pai de dois filhos e advogado, contrário a imprevistos. Por conta disso, naquele momento, sentia-se perdido. O caso era grave.
— O seu pai teve um infarto, lamento — foram as palavras do médico quando conversou com Cristiano.
Tudo começou com uma dor forte no peito. Uma ligação a um amigo, um pedido de socorro. Atendimento precário no hospital da sua cidadezinha, encaminhamento para a cidade maior. Espera por vaga na UTI, morte de várias outras pessoas nas mesmas condições. Angustia e finalmente a vaga que não significava cura, mas uma chance.
— Ele ficou muito tempo esperando uma vaga, de modo que as chances diminuíram consideravelmente. Há o procedimento pelo governo, que não é mais do que tentar desentupir as veias com uma medicação ou o procedimento particular.
— Quais são as chances pelo método público? — Cristiano indagou.
— Vou ser franco com o senhor: mínimas.
— E o particular?
— Eu não posso dar detalhes, mas adianto que se há uma chance de salvá-lo, é essa. Na verdade, qualquer pessoa que escolhe por este procedimento possui boa chance.
— Mas como faremos? Qual o preço?
— Não temos muito tempo, mas vou chamar um representante do plano para conversar com o senhor.
Cristiano assentiu. Sentou-se ao lado da esposa e do irmão Eduardo. Ambos ralharam com ele sobre sua hesitação em pagar pelo tratamento do pai. Ele herdara a objetividade e franqueza de Amadeu:
— Se o pai vai morrer de qualquer jeito por que gastar seu dinheiro?
Não tardou para uma mulher de vestido vermelho, salto-alto e meia calça trilhar por aquele corredor vazio. Ela trazia uma prancheta e um sorriso bonito. O corpo todo era perfeito. Os olhos azuis, Cristiano observou bem e notou que havia o número oito tatuado embaixo do direito. A pele era diferente de tudo que o jovem havia visto, oliva e os cabelos pintados de vermelho. O pescoço vinha encoberto por um cachecol preto. Ela continuou em pé e estendeu a mão direita.
— Boa noite, senhores. Sou Suzi.
— Sou Cristiano, boa noite. O doutor disse que você explicaria sobre o procedimento particular.
— Exatamente — ela sorriu. — Entretanto temos que conversar em minha sala, no pavilhão particular. Sigam-me.
Os três parentes do paciente seguiram a mulher pelo corredor deserto do hospital. Ela destrancou uma porta de vidro, donde se lia a palavra Copas e seu símbolo correspondente: um coração vermelho.
— Sentem-se, por favor.
— Suzi, não é? Poderia ser mais direta, por favor? — Cristiano manteve-se em pé.
Ela sorriu. Depois forneceu uma pasta rubra e aveludada que estava sobre a mesa ao homem que se negou a sentar. Cristiano a abriu. A cada página que mudava sua expressão ganhava contornos de confusão. No meio dela, ele desistiu das páginas seguintes. Indagou:
— O que é isso? Não compreendo o motivo de me mostrar corpos sem cabeça.
— O senhor pediu objetividade — ela deu de ombros. — Todos estão em perfeitas condições. Uns são mais bonitos, outros menos. Alguns mais jovens outros nem tanto. O preço está embaixo das imagens.
— Continuo sem compreender.
— Senhor, estou oferecendo um corpo novo para o seu pai.
— Isso é impossível — Cristiano se sentou. 

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