11 de dezembro de 2013

O Natal de Raquel e Raira

 

Raira: Onde fui criada não se falava do Natal. O que me lembro do Orfanato é que todos os dias pareciam os mesmos. Talvez fossem... Somos crianças esquecidas, abandonadas, que nada influem no mundo com sua existência. Para nós, não é permitido participar deste ritual de fim de ano; desta alegria que invade a mente das pessoas uma vez por ano. As imagens, ah, as imagens! Elas me fascinam. A TV! Puxa, como é mágica, mas era negada a nós como o natal. Das vezes que a vi, foi quando, de surpresa, eu entrava no quarto de uma funcionária do Orfanato. E foi numa dessas vezes que eu vi o tal Papai Noel; um velhinho de vermelho que voava em um trenó mágico e ainda bebia Coca-Cola. Passei a querer conhecê-lo e a experimentar Coca-Cola.

Raquel: Uma mulher pode esconder muitos segredos. O que ela não pode é impedir que o remorso lhe destrua um pouco a cada dia; que lhe consuma lentamente; dolorosamente. As minhas crianças, Deus, onde estarão? Quando chega esta época do ano, o meu peito se aperta ainda mais e o pior de tudo é que tenho de fingir que tudo está bem. Viajo tanto, as vezes para o país deles, mas não posso vê-los. Revivo mentalmente os poucos momentos que passamos juntos todos os dias da minha vida. Tenho gravado os seus pequenos rostos e tento imaginar como estarão agora; como ficarão quando adultos. O que farão? Eu espero que não o que eu faço, nem se envolvam com as pessoas que eu me envolvi.

Raira: Eu e Raul fugimos do Orfanato. Fomos buscar a nossa Coca-Cola; o nosso Natal. Somos diferentes das outras crianças e isso me faz questionar, quem, afinal de contas, é o nosso pai? Nossa mãe? Que tipo de monstro são? Eu ainda posso imaginá-los bonitos, confiantes e arrogantes. Não verdes... tenho vontade de conhecê-los e acho que pedirei isso ao velhinho do trenó. Pelo que me lembro, ele realiza desejos de todas as crianças. Outra coisa que Raul me conta e tenho medo de saber como ele aprendeu tudo isso, é sobre os nossos pensamentos. O poder que eles possuem. Eu não entendo bem, mas é como se estivéssemos conectados com nossos pais; como se fôssemos extensões deles. Nossos olhos, os olhos deles. Ele diz que o pai fala com ele através de sua mente; que o guia.

Raquel: E penso em Reinald, que não sabe dos filhos. Isso me dói também. Eu não tive escolha, tinha de protegê-los do Xadrez. O mesmo Xadrez que esconde o que aconteceu com o Rei. Temo, pressinto que algo de ruim aconteceu com Reinald, eu sinto isso. É como se estivéssemos ligados de alguma forma. Eu estou acompanhada de outras modelos e do meu empresário, estamos em uma mesa reservada. Aqui, nesta cerimônia glamorosa, destinada a um grupo seleto de celebridades, com o vinho na taça e ao som de risadas falsas, eu penso e me imagino preparando um peru para os meus filhos.

Raira: Ainda não entendi, mas não vou negar que isso é divertido. Estamos em uma casa grande, a neve cai lá fora. É véspera de natal e estamos á mesa, um homem bondoso nos chama de filhos. É assim, ter um pai? Ele ri, afaga os meus cabelos e abraça o meu irmão. Raul, que quase sempre está sério, se permite sorrir também. Isso é de verdade? Isso é maravilhoso! Há muita comida sobre a mesa, uma árvore de natal enfeitada na sala e a lareira acesa. Eu me vejo naquele comercial que vi no quarto da empregada do orfanato. E para minha felicidade ser completa, na minha mão direita está ela: a garrafa de Coca-Cola.

Raquel: Então tiro o peru do forno, o pino do termômetro levantado. O cheiro bom invade minhas narinas. Trajo luvas para não me queimar, a neve cai lá fora, observo pela janela. Estou mesmo em Paris. Aproximo-me da mesa com a forma nas mãos, todos estão em seus lugares. O meus olhos encontram os do meu filho. Ele é lindo e tem os olhos do pai. Está sorrindo, feliz. Há um homem que brinca com ele, ali, representando seu pai. Parece um bom homem, eu me casaria com ele. Eu teria aquela vida, por Deus, se teria... Então eu ouço a palavra “Mãe!” Desfaço-me do que carrego, afasto os cabelos desarrumados do rosto e me encontro com ela.

Raira: Eu a vejo, desarrumada, o cabelo negro despenteado, linda. Cansada, doce, sorrindo. Eu sei que é ela; tenho certeza. Chamo e desperto sua atenção para mim. Nossos olhos se encontram, é tudo verdade. Minha mãe está comigo. Ela não diz nada, mas lágrimas se fazem nos seus olhos, apesar do sorriso. Ela se senta, pega a minha mão e a beija. Agora tudo faz sentido; o pai está na minha mente também. Ele sussurra, sua voz é firme, mas dócil. Explica sobre o impossível; de como ele é uma ilusão. Do tempo, que não existe. Do presente que estava me dando. Ele me diz:
— Feliz Natal, filha.
Então concluo que é ele, que sempre foi ele o Papai Noel que vi na TV.

Paul Law
_________________________________________________________
Para conhecer Raquel, leia Xeque-Mate.
Para conhecer Raira, leia Rainha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo. Seu comentário é muito importante!